Lisboa foi durante uma semana ponto de encontro de três dezenas de jovens europeus que habitam em França, Inglaterra, Holanda, Alemanha e Portugal, países onde continuam a ser chamados de «imigrantes de segunda geração» numa referência à naturalidade dos seus pais, que provêm de partes do mundo tão diferentes como Marrocos, Cabo Verde, lémen, Líbano, Camarões, Angola, Congo, Gana ou Irão. Debates, conferências, workshops e andanças pela área metropolitana foram algumas das actividades que deram corpo a um encontro intercultural que se propunha debater a forma como pessoas de diferentes etnias, idades e meios sociais partilham o espaço urbano. ? Ao encontro juvenil lnterCídadesfo associada a conferência DiverCidades, que reuniu, na Universidade Lusófona, académicos, políticos, representantes associativos e curiosos. O encontro, organizado pela Fundação Friedrich Ebert, permitiu assim que jovens de Lisboa, Newcastle, Paris, Roterdão e Berlim trocassem visões, conhecimentos, experiências, e a partir daí reflectissem sobre as diferenças que existem no seio da população urbana e sobre estratégias de encarar a diversidade como um potencial e não como um problema. Mais do que definições ou conclusões, A CAPITAL recolheu as impressões, nem por isso muito boas, desta amostra de população europeia que vive nas cidades... ou nas suas margens
Setenta e cinco por cento da população europeia vive nas áreas urbanas. São milhões de existências, nem todas agradáveis, obrigadas a conviver na harmonia possível. Que o diga M'Hamed Binakdane, nascido em Marrocos há 22 anos, mas criado desde os 8 meses de vida na cidade de Gennevilliers, na periferia de Paris. A sua experiência e o seu testemunho ilustram bem o que é ser em França um imigrante de segunda geração. «Se, por exemplo, a polícia me encontra na rua, para-me imediatamente só pelo meu aspecto árabe», diz, sorrindo. «E se responder a um anúncio de trabalho por telefone é quase certo que, ao dizer o meu nome, oiça imediatamente do outro lado da linha, que já não há vagas», complementa. «Outra coisa muito improvável é que me deixem entrar numa discoteca normal», declara finalmente com um sorriso mais irónico do que confonnista.
Mliamed tinha tudo para ser um jovem suburbano desintegrado e revoltado. Em vez disso, é, desde a adolescência, um ddadão consciente dos seus direitos, pelo que não desiste de se empenhar política e civicamente na transformação da sua sociedade. Sobre a integração dos imigrantes que tanta falta faz em toda a Europa, M'Hamed tem ideias darás. Na sua opinião, é necessário haver prática cultural e partiripação cívica empenhadas por parte dos imigrantes, sobretudo dos jovens. O exemplo que dá é o seu. Ou melhor, o da associação em que trabalha em Gennevilliers juntamente com outros filhos de imigrantes de Marrocos, da Algéria ou do Senegal, para além de franceses brancos de França. Neste momento, M'Hamed e os companheiros estão a montar uma peça de teatro a partir do grande clássico francês «As Bodas de Fígaro», de Beaumarchais, adaptando o texto à actualidade e às suas próprias condições de vida. Esperam assim estimular a reflexão, no seio da comunidade magrebina que vive nos «batimênts», sobre temas tão complexos como a integração dos imigrantes, o racismo ou a relação entre diferentes classes sociais. «Queremos misturar as pessoas, sublinhar as suas diferenças e demonstrar que todas participam no mesmo jogo.»
M"Hamed é um dos 30 jovens com vinte e poucos anos que se reuniram em Lisboa, entre os dias 2 e 9 de Outubro, para participar no encontro intercultural «InterCidades». Vieram de Berlim, de Paris, de Roterdão e de Newcastie, cidades para onde os seus pais emigraram, oriundos de partes do mundo tão diferentes como lémen, Irão, Líbano, Angola, Moçambique, Congo, Marrocos, Tunísia ou Camarões. O convite foi dirigido a várias associações de jovens pela Fundação Friedrich Ebert, que organiza o evento. Em Portugal, a fundação elegeu como parceiro a Associação Unidos de Cabo Verde, o que justifica o fado de haver muitos descendentes de caboverdianos entre os participantes portugueses do encontro.
Os jovens, instalados na pousada do Instituto Português da Juventude, no Parque das Nações, estiveram assim numa espécie de «retiro», organizando-se em quatro grupos, aos quais correspondiam workshops de fotografia, de música, de filme, e, finalmente, de dança e drama. Participaram também na conferência internacional DiverCidades, cujo tema era a diversidade das cidades europeias, e trouxeram para o debate inquietações e observações que resultaram da sua incursão pela realidade de Lisboa.
Começaram por conhecer o miolo da capital, visitaram e fotografaram os principais chamarizes turísticos, e só depois se aventuraram nos bairros degradados da Amadora, mesmo às portas da cidade.
Para os participantes que vieram de fora, «os guetos só de negros» foi o fado mais chocante com que se depararam. Quase sem excepção, os jovens ouvidos pelo nosso jornal, confessaram não fazer ideia de que ainda houvesse na Europa pessoas a viver em condições de tão extrema precaridade como as que viram nos «bairros da lata». Mesmo às portas de Benfíca, o Bairro das Fontainhas - ou o que resta dele, já que se encontra em processo de demolição - foi o lugar que mais impressionou este grupo de jovens.
M'Hamed foi um dos jovens que se confessou abismado com a realidade dos subúrbios lisboetas. Mais ainda quando visitou o Casal da Boba, urbanização camarária onde foi realojada a população do Bairro das Fontainhas. Perspectivando o futuro a partir do conhecimento da realidade francesa, MÏiamed considera que esta solução apenas adiará o problema. «Estão a mudar as pessoas para prédios, mas os problemas subsistem», diz. «Estão a fazer o mesmo que se fez em França há vinte anos atrás. E, provavelmente, daqui a outros vinte anos, vão-se limitar a demolir os prédios para fazer casas ainda mais pequenas», condui. UM'PURO'HOLANDÊS. Jorge Lima, um mulato nascido em Roterdão há 21 anos, filho de caboverdianos de Santo Antão, confessa que também ficou «bastante chocado» com os guetos portugueses. «Nas cidades da Holanda as pessoas vivem todas misturadas e não há nada de semelhante. Sinceramente, não fazia ideia de que existissem sítios assim na Europa», dedara o estudante universitário. Só em Soterdão, Jorge explica haver mais de 160 nadonalidades distintas, sendo o espaço da cidade, nomeadamente o centro, partilhado entre todos. Usando de liberdade poética, Jorge arrisca mesmo um conselho ao governo ou a quem quer que dedda em Portugal sobre as questões do urbanismo: «O coração de Lisboa é muito bonito, mas tem de se espalhar por toda a área metropolitana.»
Jorge foi criado com os pais, que agora gozam a sua reforma em Cabo Verde. Vive com uma irmã, mas afirma nunca ter tido muito contado com pessoas de Cabo Verde, razão pela qual tem muita dificuldade em considerar-se caboverdiano. «Sinto-me sobretudo um cidadão da Holanda. E até me acontece estar por vezes com eles e observar coisas que eu nunca faria. Por exemplo, aquele hábito de deixarem sempre tudo para amanhã. A isso, o holandês que há mim diz não! Se é para fazer, é para fazer já», explica. Na sua terra natal, Jorge diz que os cabo-verdianos se adaptam rapidamente à vida em sociedade e põem de lado a sua cultura. «Aceitam a cultura holandesa, não falam crioulo e não se unem tanto como em Portugal», dedara.
Segundo Jorge este encontro intercultural foi muito rico pelo cruzamento das experiências dos vários jovens. «Havia muitas coisas que eu não sabia sobre os outros países e percebi que sobre o meu País havia ideias muito deturpadas». Nomeadamente os franceses e os alemães transmitiram a Jorge a ideia que tinham 4a Holanda: um país muito tolerante e muito concentrado na questão da droga. «A realidade é muito diferente», explica. «Na Holanda temos regras, muitas regras, para quase tudo. E, sobretudo desde o u de Setembro, o ambiente é muito tenso. Antigamente, se estávamos a falar de pessoas de outros países, dizíamos a sua nadonalidade. Agora, desde logo na comunicação sodal, as pessoas são agrupadas em grupos religiosos. São os árabes, os islâmicos, os judeus. Parece já não haver a convicção de que uma sociedade multicultural é uma riqueza, o que é triste.»
Em relação às drogas leves e à ideia que muitos jovens fazem da Holanda, Jorge julga ter contribuído para dar uma imagem mais exacta do seu pais. «As pessoas acham que se pode rumar livremente na ma e ter na sua posse a quantidade que se quiser. ÍÏStO é assim. O consumo soe permitido nas coffee-shops».
Para além da capital portuguesa, Jorge diz ainda que ficou com uma imagem muito mais exada de outras grandes capitais. Em Berlim, por exemplo, não fazia ideia de que quase só estrangeiros habitavam o centro da cidade. Em Paris, perturbou-o a ideia de haver urbanizações onde só vivem árabes ou, como acontece em Portugal, onde só vivem negros. ANFITRIÃ CRIOULA. Sônia Borges, de 23 anos, é filha de cabo-verdianos e vive na Damaia, Amadora. O conhecimento que tem de Lisboa fez com que fosse uma das portuguesas que serviu de cicerone ao grupo reunido em Lisboa. É licenciada em História Moderna e Contemporânea, nunca viveu em bairros de lata e, em rigor, só contactou com essa realidade quase no fim do ensino secundário, quando conheceu descendentes de africanos que aí viviam.
Sônia sabe quase tudo sobre a história dos negros em Portugal. Desde a chegada ao porto marítimo de Lagos do primeiro contigente africano, em 1445, até aos nossos dias. Mas a visita aos bairros degradados da Amadora impressionou-a tanto ou mais do que os relatos que leu nos livros de História. «As pessoas que vivem nesses bairros precisam sobretudo de atenção e a única maneira de lidar com elas passa por reconhecer que têm uma cultura própria, uma cultura que merece ser respeitada», diz.
Sobre os realojamentos Sônia tem uma visão pessimista. «Num bairro as portas estão sempre abertas, as crianças correm de um lado para o outro, vigiadas pêlos mais velhos. Nos prédios, acho que já não vai ser assim. Há uma alegria nas crianças que eu acho que vai desaparecer», dedara. Na sua opinião, não é mudando as pessoas de um lado para o outro que se resolve a situação. «Isso só adia o problema», explica.
Sobre a utilidade deste encontro Sônia não tem dúvidas. «O objectivo era mostrar aos jovens que nós temos uma palavra a dizer no nosso futuro. E isso acho que foi conseguido», afirma.
COORDENAÇÃO ALEMÃ
Christian Emst, 24 anos, alemão a residir em Portugal só até à próxima semana, foi o coordenador deste intercâmbio juvenil de experiências de vida e explica que «o objectivo deste trabalho foi dar inputs, dar ideias de como se pode lidar com a diversidade, integrando a participação juvenil no discurso sobre os temas da imigração e da segunda geração». O mesmo responsável acrescenta que «este encontro vem na sequência de um círculo de reflexão iniciado nos últimos anos» e decorre de «uma actividade de informação sodopolítica para a cidadania» a que se tem dedicado a Fundação com o nome do primeiro presidente alemão democraticamente eleito.
O projecto teve duas componentes, que foram o encontro juvenil e a conferência internacional, tendo ambas as iniciativas o objectivo de pôr em diálogo jovens e adultos, representantes de diferentes comunidades. A expectativa da organização é a de que os diferentes académicos, activistas e cidadãos que participaram no evento se convertam em «multiplicadores» e assim estimulem o debate europeu sobre a diversidade na ddade.
Reinhaid Naumann, representante em Portugal da Fundação Friedrich Ebert (FÉS) e responsável pela conferência internacional que sexta-feira terminou na Universidade Lusófona, ajuda a compreender a razão de uma fundação ligada ao SPD, partido sodal-democrata alemão actualmente no poder, tomar a dianteira na reflexão destas questões à escala europeia. «Na Alemanha qualquer partido com assento parlamentar tem direito a fundos públicos para fazer formação política e dvica, através das fundações, que são instituições de utilidade pública sem fins lucrativos». Naumann aproveita a explicação para abrir parêntesis e lembrar que a FÉS deu um importante contributo ao nível da formação de quadros políticos, de sindicalistas e outros, durante o processo de democratização de Portugal, após o 25 de Abril de 1974.
Com representações em mais de uma centena de países, a Fundação Friedrich Ebert está hoje particularmente activa nos países que se encontram em fase de transição política, nomeadamente os do Leste Europeu, mas mantém-se atenta ao muito que há a fazer na Europa que se considera «consolidada». Reflectir sobre a diversidade étnica e cultural das ddades é, segundo Naumann, uma prioridade na agenda da fundação e por isso um tema a revisitar num futuro muito próximo.
Fonte:ACIME/CAPITAL
Publicado: Segunda, 11 Outubro, 2004
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