Leia a história de Assunção Fernandes, uma cabo-verdiana que em Portugal conseguiu alcançar muitos dos seus sonhos e que com o desporto mudou a vida de muitas jovens do seu bairro, em Oeiras.
Texto: Correio da Manhã | Foto: Direitos Reservados
Assunção Fernandes chegou ao bairro da Pedreira dos Húngaros, em Oeiras, com 23 anos. Veio ter com o marido, mecânico de profissão, na altura a trabalhar na construção civil. A cabo-verdiana trazia um filho pela mão, outro na barriga e uma energia sem fim, que começou a aplicar assim que se viu instalada. Ao perceber que havia muitas meninas do bairro que depois da escola ficavam sem nada para fazer, pensou partilhar com elas a paixão que tinha, desde miúda. O andebol. E se bem o pensou melhor o fez.
"Vi duas meninas a passarem à frente da minha janela e perguntei-lhes se tinham mais amigas e se queriam experimentar jogar comigo", recorda. "Passado meia hora tinha umas 25 crianças à minha porta. Todas muito pequeninas…" Depois de convencer alguns pais a deixarem as filhas jogarem começou uma aventura que duraria mais de 20 anos e catapultaria algumas das crianças para uma carreira internacional.
Os primeiros passos, porém, foram modestos. Os jogos aconteciam num campo de terra batida que também servia aos rapazes de campo de futebol improvisado. Depois, o grupo passou para um terreno dentro da Escola Secundária de Linda-a-Velha, "numa altura em que nem todas tinham pavilhão gimnodesportivo". Esse chegou "dois ou três anos" depois do início do projeto.
"Rapidamente as pessoas perceberam que nós estávamos a trabalhar a sério, sobretudo assim que as miúdas começaram a desenvolver-se", diz Assunção, com o ar de quem tem uma fé absoluta na capacidade transformadora do desporto. "Não foram só as aptidões físicas delas que melhoraram. Foram as suas competências individuais, o saber estar, o saber ser… Tudo isso se modificou perante os meus olhos. Como algumas dizem, agora, em entrevistas, o andebol mudou a vida delas."
MÃE SOLTEIRA
Entretanto, Assunção teve outro filho (o terceiro, que fechou a conta), separou-se do marido e entre o emprego, a família e o andebol, achou que devia fazer alguma coisa por si própria. Decidiu fazer aquilo que estava sempre a aconselhar às suas pupilas: foi estudar. Quando chegou de Cabo Verde tinha o 9º ano, mas como não lhe deram equivalência, teve de repetir o ano em Portugal. Trabalhava durante o dia, estudava à noite, orientava o grupo de andebol feminino nos intervalos. "Toda a minha vida tem sido assim", explica. "Sempre fiz muitas coisas ao mesmo tempo e acho que quando se quer muito uma coisa, tudo se consegue, com sacrifícios."
Depois do 9º, fez 10º, 11º e 12º e "com a ajuda de Deus" tudo correu bem. "Deixei muitas vezes os meus filhos com a minha irmã para conseguir conciliar tudo, mas é verdade que também tive, tenho tido sempre, muita gente a apoiar-me pelo caminho."
A trabalhar como animadora desportiva e cultural na Câmara Municipal de Oeiras, estava, desde 2007, no CLAII – Centro Local de Apoio à Integração de Imigrantes, quando surgiu a oportunidade de fazer uma pós-graduação. Mesmo sem licenciatura. "Dado que já tinha muita experiência na área da imigração, pude fazer a pós-graduação em contexto multicultural, através do Alto Comissariado para as Migrações", conta.
Em 2009, precisamente 20 anos depois de chegar a Portugal e aproveitando o impulso de já andar na Universidade Católica, decidiu licenciar-se. Mesmo sem ter dinheiro para pagar o curso. "Telefonei para lá, disse-lhes claramente que não tinha condições financeiras para estudar, e a assistente social ajudou-me a candidatar-me a uma bolsa de estudos do ministério." Foi com a bolsa que conseguiu licenciar-se em Serviço Social, em 2013, jurando para si própria que, a partir daquele dia, "nunca mais leria nada na vida, a não ser a revista ‘Maria’." O estado de espírito durou uma semana. Findo esse tempo, já estava a pensar no mestrado e em como conseguir os sete mil euros necessários para o fazer. Conseguiu-o com a ajuda do Banco BIC, que lhe pagou os primeiros meses do curso, e com uma bolsa da Soroptimist, movimento de voluntários global que ajuda mulheres e jovens de todo o Mundo a transformarem as suas vidas.
DO BAIRRO À EUROPA
Também no andebol as coisas não podiam correr melhor. Com o fim do bairro da Pedreira dos Húngaros – cuja última barraca foi destruída em abril de 2003 – Assunção levou o projeto para Outorela. A Associação Cultural e Desportiva da Pedreira dos Húngaros – que ajudou a fundar para que o grupo pudesse federar-se e competir a sério – passou a ser a Associação de Solidariedade Social Assomada. E nascia a Equipa de Andebol da Assomada, que não mais parou de crescer. "Ao longo dos anos fomos participando em campeonatos a nível regional e nacional e, com os resultados alcançados, chegámos às competições europeias", recorda.
A maioria das jovens nascidas em Portugal tinha, mercê da lei portuguesa então em vigor, nacionalidade cabo-verdiana, o que fez com que a Federação Europeia questionasse a Federação Portuguesa. Assunção acredita que isso acabou por levar à mudança da lei, em 2007. Entretanto, muitas das jogadoras foram chamadas à seleção nacional, outras saíram do País. Como o caso da mais famosa, Alexandrina Barbosa, atualmente a jogar pela equipa francesa Fleury Loiret HB.
Assunção esteve à frente do grupo até 2012, altura em que passou o testemunho a alguém mais jovem, mas continua a ter projetos relacionados com a equipa. Quer escrever um livro e dirigir um documentário.
Publicado: Terça, 11 Agosto, 2015
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