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Thuram. “Lembro-mede atirarem bananas ao Joseph-Antoine Bell”

O antigo internacional francês esteve em Portugal na conferência “A fundação Lilian Thuram: educação contra o racismo” na Fundação Gulbenkian e falou ao I.

Lilian Thuram é implacável. Na pequena conversa de meia hora que conseguimos ter a sós com ele, antes da conferência, o assunto é um e um apenas – o racismo. Não é que Thuram não seja simpático; é até bastante bem-disposto, gosta de arrancar gargalhadas à plateia e na nossa entrevista abre logo as hostilidades, ao avisar a intérprete em tom de brincadeira: “Se eu disser disparates, você não pode traduzir!”. Mas Lilian não deixa ninguém distraí-lo do seu objectivo: denunciar o facto de que o racismo é uma construção cultural e que pode, por isso, cair por terra. Dentro e fora de um campo de futebol.

Para os mais esquecidos, não é a primeira vez que Thuram se cruza com os portugueses. O jogador francês com o maior número de internacionalizações (142) fez parte da selecção gaulesa de 1994 a 2008, o que fez com que Portugal se encontrasse em campo com Thuram por várias vezes. As mais inesquecíveis são duas meias-finais: a do Euro-2000, onde a mão de Abel Xavier ficou famosa, e a do Mundial-2006, onde Thuram foi considerado o Homem do Jogo (e a selecção portuguesa perdeu por 1-0). Abel Xavier não esqueceu Thuram. Ontem esteve na primeira fila a ouvir o francês e arriscou-se a ser mais fotografado do que o orador principal da conferência.

De volta à missão de Thuram, o ex-futebolista utiliza frequentemente o argumento de que o racismo é, como o sexismo, uma criação cultural. “Não existe sexismo aqui em Portugal?”, pergunta provocatoriamente à audiência. “Oui!”, responde firmemente uma voz feminina, causando gargalhada geral. “Não são apenas as mulheres que devem denunciar essa hierarquia que coloca os homens no topo da escala. E o mesmo acontece em relação ao racismo”, explica-nos Thuram em privado. O que significa que, para o francês, os colegas deveriam ser solidários e recusar-se a jogar perante um público que entoa cânticos racistas ou insulta os jogadores negros. “Infelizmente, muitas vezes, quando as injustiças nos tocam apressamo-nos a denunciá-las, mas quando são injustiças que dizem respeito a terceiros, nada fazemos.”

Se por um lado o Reino Unido tem tomado aquilo que Thuram considera passos decisivos para lutar contra o racismo no futebol, ainda há muito trabalho a ser feito – “em todo o lado”, esclarece-nos. Lilian sentiu o racismo na pele, quando jogava em Itália. Primeiro no Parma e depois, sobretudo, na Juventus, muitos eram os adeptos que faziam os tradicionais sons a imitar um macaco. E, claro, é impossível fugir ao recente caso de Mario Balotelli. Para Thuram, isso decorre da história do país e das ideias que foram incutidas. “O nazismo cria uma hierarquia inclusive entre pessoas de cor branca”, diz Lilian, explicando que acontecimentos como a II Guerra Mundial e o apartheid na África do Sul são relativamente recentes. “Algumas pessoas dizem que Balotelli é preto, logo não pode ser italiano. Porquê? Porque existe essa ideia de pureza italiana e um negro vai assassiná-la.”

A queda do apartheid foi para o jogador o grande marco do início do fim do racismo tacitamente aceite. Na mesma década, o seu colega de equipa Marcel Desailly protagonizava um dos primeiros episódios de denúncia do racismo em campo. Num jogo da fase de grupos do Euro-96, a estrela da selecção búlgara Hristo Stoichkov desafiou Desailly, que nasceu no Gana: “Sabias que há miúdos a morrerem no teu país?”, perguntou a meio do jogo, ao que se seguiu uma série de insultos raciais. Terá sido esse acontecimento o pontapé de saída para mais jogadores falarem? Para Thuram, não. “Essa já é uma história antiga… Sempre houve problemas da cor da pele no futebol. Lembro-me quando era pequeno de atirarem bananas a um guarda-redes, o Joseph-Antoine Bell, e ele também se queixava.”

Mas outro acontecimento foi determinante para a mudança de mentalidades no seu país – o Mundial de 1998 e a vitória da chamada selecção “arco-íris”. Antes da conquista do troféu, a equipa que contava com descendentes das várias colónias francesas (Zidane da Argélia, Patrick Vieira do Senegal, Thierry Henry e o próprio Thuram de Guadalupe, nas Antilhas, entre outros). Motivo que levou o líder da Frente Nacional (partido de extrema-direita com maior expressão em França), Jean-Marie Le Pen, a chamar àquela equipa “artificial”. Mas era uma equipa que representava a verdadeira França. Multicultural, arriscamos. “Multicolor”, corrige-nos rapidamente o francês, explicando que todos os países sempre foram multiculturais (“Olha as diferenças entre o Norte e o Sul de Portugal…”). Isto é outra liga, afinal, a liga da raça. “Mas efectivamente na sociedade francesa há um antes e um depois de 1998”, admite. “Gerou muito debate positivo e aquilo que é perigoso, parece-me, são as sociedades onde não se debate o racismo.”

SEM PAPAS NA LÍNGUA Lilian Thuram sente-se surpreendido por ser caracterizado como um homem que diz o que pensa, mas a verdade é que o francês não tem problemas em partilhar as suas opiniões, mesmo que incomodem alguns. Em França, sempre foi um crítico activo do presidente Nicolas Sarkozy. Thuram ficou especialmente chocado quando, depois dos motins dos subúrbios de Paris em 2005, o presidente francês apelidou esses jovens de “escumalha”. Desde aí, o futebolista, que também cresceu num desses bairros, defendeu activamente aqueles jovens. Garantiu-lhe alguns inimigos, mas também o tornou um herói para as minorias francesas, que viam nele o jogador famoso que não os esqueceu (ao contrário de Zidane, frequentemente chamado de “traidor” pelos descendentes de argelinos).

Mas até a sua amada França recaiu nos velhos hábitos depois de 1998. Surgiu um vídeo secreto da federação de futebol, onde se ponderava a adopção de quotas máximas para os jogadores negros, optando por aquilo que chamavam um estilo mais “ágil” dos jogadores brancos. Nesse grupo estava Laurent Blanc, seleccionador francês e antigo jogador da equipa multicolor de 1998. E mesmo o Paris Saint-Germain, clube do coração onde Thuram gostaria de ter acabado a sua carreira, se o coração não o tivesse traído (uma doença cardíaca obrigou-o a retirar-se em 2008), um grupo extremista chamado Boulogne Boys não se coíbe de entoar os seus cânticos e pendurar faixas provocatórias. “Mas o PSG tem feito por erradicar esses membros e por impedir a entrada do estádio a quem faz cânticos racistas, como se passou nos clubes ingleses”, assegura Thuram.

Já com a Sérvia o jogador tem um discurso mais duro. A Europa de Leste é conhecida por ter grupos extremistas muito radicais. Na véspera do último Europeu, a BBC exibiu uma reportagem chamada “Estádios do Ódio”, onde acompanhou os adeptos racistas da Ucrânia e da Polónia. Muitos no Reino Unido, país altamente empenhado na luta contra o racismo no futebol, falaram em boicotar o Europeu, mas ninguém seguiu a ideia. Entretanto, a última vítima foi precisamente um jogador inglês, quando num jogo recente contra a Sérvia, na selecção de sub-21: Danny Ross queixou-se de insultos e de lhe terem atirado pedras. E em Maio a selecção sérvia expulsou o jogador Adem Ljajic por não cantar o hino nacional. Medida que agradaria a Le Pen, que em 1998 exclamava “eles nem sabem cantar o hino!”, acerca da selecção francesa. As declarações de Thuram nos jornais foram inflamadas: “A FIFA tem de pensar em banir a Sérvia.” Agora não foi tão longe e disse-nos que há outras formas de pressionar o país: “Poderíamos sancionar os clubes e federações para levarem a sério este problema, porque estes adeptos são uma minoria nos estádios.”

Também o futebol português foi alvo das críticas de Thuram. Falámos em Deco, antigo colega de Thuram no Barcelona, e nas críticas de que foi alvo quando se naturalizou português. Lilian não quer ser polémico (“Não estou a par do assunto”, explica), mas nem assim escapa a lançar algumas farpas: “Às vezes as pessoas têm uma certa tendência em fechar-se na nacionalidade, não só na raça, e em criar uma certa pureza da nacionalidade”, explica. “Mas isso é porquê? Porque não considerarem o Deco um puro português? E o que é um puro português?”

Mesmo antes de irmos embora, nos minutos finais, rematámos com outra pergunta sobre nacionalidade: Thuram não gostaria de ter jogado pela selecção de Guadalupe, como fez o seu colega Angloma? A resposta foi simples. A vida não deixou, porque seria difícil conjugar a vida em Paris com jogos nas Antilhas. “Mas teria achado piada jogar por Guadalupe, porque me faria regressar à minha infância.”

I Online, 16 de novembro de 2012. 

Foto tirada em: http://contre-pied.blog.lemonde.fr 

Publicado: Sexta, 16 Novembro, 2012

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